Livros que causam, livros com causa
29/02/2024

Todas as horas da morte... + Leia uma crônica!

por Chico Mieli 

 

Conan Doyle; Tchékhov; no Brasil, Guimarães Rosa: o elenco de escritores conhecidos por também exercerem a medicina é extenso e essa dupla ocupação, um dado sempre notório em suas biografias. Clichê de reportagem, como lembrar que, embora jamais tenha exercido a profissão, Carlos Drummond de Andrade era farmacêutico diplomado pela Universidade Federal de Minas Gerais... Certamente, sua poesia não dependia dos tônicos e antídotos que deixou de receitar. 

Lançado na semana passada, em São Paulo, com bate-papo transmitido pelo Instagram da Editora Jandaíra, o livro Pela Hora da Morte serve como um contrapeso à anedota drummondiana. Antes de tudo porque sua autora, Nathalia Protazio, também é farmacêutica, mas efetivamente farmacêutica, profissional da saúde em exercício. Depois, porque as crônicas que reuniu nesse volume partem da matéria mesmo vivida durante o tempo que trabalhou no combate à pandemia de covid-19, atendendo em uma farmácia de Porto Alegre.

Pela palavra, solução com cara de composto químico, de efeito muitas vezes terapêutico, a farmacêutica-escritora projeta a linha de frente ao coronavírus como forma de reflexão, memória e retomada daquela circunstância, sob uma perspectiva surpreendente. Por meio de seus dois trabalhos, cuidando e escrevendo, se expôs duplamente. 

Aqui você acompanha uma dessas crônicas de ofício, Teste Rápido, texto impossível de ler sem ansiedade em descobrir o resultado, se positivo ou negativo, o quão imponderável... Porque houve uma pandemia, porque cabe não esquecer todo o sofrimento, pânico e dúvida. Porque é o tempo justo de elaborar o que vivemos, nas tréguas da hora da morte. 

 

TESTE RÁPIDO

Dizem que quem impõe o ritmo do jogo nos primeiros minutos tem mais chance de ganhar, independente se em casa ou no estádio adversário. Não sei. Espero que esses primeiros cinco minutos do ano não o definam.

Estamos há alguns meses fazendo o teste rápido de covid na farmácia. Primeiro foi fácil me convencer de que o risco era controlado e que o fato de eu sair de casa pra trabalhar, fazendo ou não uma picadinha no dedo de uma pessoa suspeita, dava na mesma. TesTe sorológico usando uma gota de sangue, jogo rápido, entrou, perguntou meia dúzia de palavras para verificar se a pessoa foi exposta há mais de duas se-manas, se tem sintoma, se tem CPF. Uma picada, uma gota, diluente e uns minutos depois a resposta. Reagente ou não reagente. IgG. IgM. Nunca a população porto-alegrense sentiu tanta falta das aulas que não teve de imunologia básica.

— Calma, minha senhora, seu resultado é positivo, mas é um positivo bom. IgG reagente é como se a senhora tivesse tomado a vacina. Eu sei, eu sei. Isso quer dizer que a senhora pegou, mas veja só, a senhora não morreu.

— É, eu sei que a sua namorada deu positivo, mas o seu resultado é negativo. Tenho certeza. Não. Nenhum teste tem 100% de eficácia, todo exame tem limitações. Sim, 98,7 não é 100%, mas não é porque sua namorada pegou que você obrigatoriamente tinha que ter pego. Tudo bem, dormiu na mesma cama... A semana toda? Uau... Não faz sentido mesmo. A gente ainda não sabe tudo sobre o vírus...

— Eu sinto muito, mas infelizmente o senhor está na fase aguda da infecção. IgM positivo com sinto-mas importantes. Eu recomendo que o senhor faça isolamento social e entre em contato com o portal da prefeitura 156. Eu não tenho competência técnica nem legal para dar um atestado médico, eu sou só uma farmacêutica. Autônomo? Três filhos? É, nesse caso o senhor vai ter que se permitir uma pausa.

Terça-feira, um dia comum de um ano novo, trabalho igual ao do ano velho. Mesmo trajeto para encontrar os mesmos colegas, com o mesmo chefe, na mesma rotina, pra sustentar a mesma vida. Afinal: O que tem de novo no que acontece de novo? Não soube me responder, mas senti o ar rarefeito e estático que ocupava o ambiente do balcão de medicamentos. Eu estava cansada. 2021 mal começara e eu estava aparentemente exausta. Também, pudera, bancamos os jovens e a festa de ano novo deixou pra trás um rastro de espumante barata com molhos árabes, vidro do que já foi taça e aquela mistura nostálgica de drogas lícitas com axé anos 2000. Repito: bancamos os jovens.

Pensava nisso e uma brisa soprou. Talvez a novidade seja eu ousar ser jovem no meio de uma pandemia. Azar. Vou guardar os medicamentos controlados com uma energia nova, uns risinhos de lembranças recentes abafados pela máscara e uma melodia do Mr. Catra na mente: “Pan ran, pan pan pan pan pan pan ran”. Eu tenho minha vida. Eu sou uma mulher jovem e independente. Eu posso fazer o que eu quiser! Alguém grita e atrapalha meu devaneio: “Serviços!” Essa é a realidade me chamando. “Ai, já tô indo!” Às vezes nossa falta de classe me faz pensar que não trabalho numa farmácia, aqui deve ser uma lanchonete, só pode.

– Boa tarde.
– Boa tarde.
– A senhora vai fazer o teste de sangue, o que aconteceu?
– Eu tive contato com minha patroa, gostaria de saber se estou com covid também.
– Certo. A senhora sabe que esse teste vai identificar a presença de anticorpos, não é um diagnóstico direto atual, só serve se o contato suspeito foi há mais de catorze dias.
– Sei, sim, sua colega conversou comigo. Obrigada. Eu tive contato com minha patroa nesses últimos catorze dias, na verdade até ontem.
– Mas quando foi o diagnóstico dela?
– Ela e o marido estão com corona desde a semana passada.
– E a senhora está indo trabalhar mesmo sabendo que eles estão contaminados?
– Eu preciso do emprego.
– Eles sabiam que estavam com covid e mesmo assim a senhora foi trabalhar?
– Eu teria ido trabalhar hoje, mas ela me acusou de ter contaminado eles.
– Acusou?!
– Nenhum parente deles apareceu doente e eu tenho minhas dores, não reclamo muito, mas tenho, sabe como é, trabalho de doméstica é uma judiaria.
– Imagino.
– Aí ela disse que só podia ter sido eu, então eu vim fazer o teste pra ver se fui eu.
– Se foi a senhora o quê? Que contaminou eles?
– É, minha filha, a senhora doutora é nova, mas eu não, eu trato com essa gente faz tempo, não posso carregar uma vergonha dessas.

Preenchi o laudo. Minha cabeça começou a latejar antes mesmo de abrir o kit. Separei o material. Uma lanceta automática, uma mini-pipeta de plástico, algodão e a cassete do teste. Higienizei o dedo com álcool. Esperei secar. Perfurei com a lanceta. O pequeno orifício quase imperceptível foi coberto por uma gota gorda e vermelha de sangue. Coletei o material biológico e o depositei no cassete diluindo com três gotas de tampão.

Um minuto. Eu observo se o material começa a correr na plaquinha de sílica sensibilizada. Dois minutos. Sento na cadeira em frente à minha companheira de espera. Três minutos. Eu consigo enfim respirar e lhe informo que mais uns minutinhos o resultado tá pronto. Quatro minutos. Eu me levanto impaciente, observo a placa, ainda não posso lê-la totalmente. Quando começamos a fazer os testes eu me convenci que o risco era controlado, tanto fazia o tipo de trabalho, o meu maior risco seria sair de casa pra trabalhar. Eu me cuido. Muito. Até uso duas máscaras. Me convenci que era só uma picadinha no dedo, uma gota de sangue e uns minutos de espera.

Dez minutos.

– Dona Martha, a senhora deu não reagente tanto para IgM quanto para IgG. Esse foi o resulta-do negativo mais feliz que eu já dei. Muito obrigada. Continue se cuidando, tá dando certo.

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