Lá vem textão... Jandaíra 2022!
por Lizandra Magon de Almeida, diretora editorial da Jandaíra
No início dos anos 2000, resolvi que precisava fazer um trabalho voluntário. O assunto estava tão em evidência na época que houve até uma feira do voluntariado, na qual ONGs de todos os matizes apresentavam seus trabalhos e recrutavam voluntários. Conheci na feira o trabalho da APBM&F, uma associação profissionalizante da então Bolsa de Mercadorias & Futuros. Eles estavam precisando de alguém pra substituir a pessoa que fazia o jornal interno com os alunos.
Durante um ano e meio, minhas manhãs de sábado foram dedicadas a esse projeto. A sede da associação ficava no Brás, perto da Rua do Gasômetro, região central e histórica da cidade. O lugar tinha ótima estrutura e selecionava os alunos conforme sua vulnerabilidade.
Desde a faculdade eu inventava jeitos de estar perto de estudantes, então me senti no céu. E achando que ia ser fácil. No primeiro dia, levei um livro e propus uma leitura compartilhada. Ninguém me deu bola. Tentei discutir uma possível pauta para o jornal. A única ideia que aparecia era algum tipo de correio elegante, bilhetes de amor. Ninguém fazia a menor ideia do que poderia ser tema para o jornal, ninguém estava muito aí com isso. A escolha dos participantes da oficina era pela dificuldade que tinham com redação, e não pelo interesse. Um desafio a mais.
Cada turma durava quatro meses e nesse período tínhamos que desenvolver o conteúdo do jornal. Passei um ano, ou três turmas, frustrada, sem saber por onde começar a despertar o interesse dos alunos. O jornal saía como dava.
Até que me lembrei do curta Socorro Nobre, do Walter Salles Jr., documentário sobre uma mulher encarcerada que trocava correspondências com o artista plástico Frans Krajcberg. E que inspirou Walter Salles Jr. a criar o roteiro de Central do Brasil.
A baiana Socorro Nobre foi cúmplice de um assalto que acabou em latrocínio. Privada de liberdade, um dia deparou com a entrevista de Krajcberg nas páginas amarelas da Veja. Se identificou com a história do artista que perdeu toda a família no Holocausto e encontrou na natureza brasileira um alento para sua dor. Socorro ficou tão tocada que resolveu escrever uma carta ao artista contando de como sua vida também perdera o sentido depois da prisão. Mas que com as palavras dele ela tinha descoberto que havia outras vidas possíveis. Que a tristeza e o vazio permaneceriam com ela, mas que ela também poderia encontrar maneiras de viver uma vida plena.
A carta foi enviada pelo pessoal do presídio à redação da Veja. A redação a encaminhou ao artista, e Krajcberg respondeu. Assim começou essa amizade epistolar improvável. O diretor Walter Salles Jr. soube da história e transformou-a em curta-metragem. O filme mostra a história de Socorro, em paralelo à história de Krajcberg, e depois a visita dele ao presídio para encontrar-se com a amiga.
Revendo o filme, percebi tudo que eu vinha fazendo errado. Não adiantava levar textos literários que me emocionavam para os alunos, que tinham vivências tão diferentes. E não adiantava falar de literatura se eles mal entendiam a função comunicacional mais básica da língua.
Resolvi levar o filme para eles verem. Passei também o comecinho do Central do Brasil, em que Dora, a personagem vivida por Fernanda Montenegro, escreve cartas para as pessoas e não as envia. Bem nesse dia, uma das alunas – todos eles estavam no Ensino Médio – tinha levado a irmã, de 12 anos, que não tinha com quem ficar. Perguntou se ela poderia participar da aula. Assistimos ao filme, e ela manteve os olhos vidrados na telinha da TV antiga.
Terminamos de ver o filme, silêncio absoluto, olhos úmidos. Fizemos uma roda de conversa, todos tinham o que dizer. Pedi que levassem a história pra casa e que pensassem sobre o que significava saber ler e escrever a partir do que tinham visto. Era preciso entender pra que serve tudo isso, porque muitas vezes até nossa sobrevivência real pode depender de um texto escrito.
Na aula seguinte, todos me trouxeram textos sobre o filme. A menina de 12 anos que participara do encontro também mandou o dela, e era o mais emocionado, o mais consistente. A irmã me disse que ela tinha ficado muito impressionada com a história.
Desde esse meu período como voluntária, me perguntava onde estava a comunicação nas aulas de língua portuguesa. Na escola, tive ótimas professoras de gramática, mas aulas de redação medíocres e de literatura também. Por sorte, tivemos uma professora de sociologia que nos fazia refletir e produzir textos argumentativos e críticos, o que salvou minha vida jornalística. Apesar de gostar de ler, minha relação com a literatura, artisticamente falando, só veio muitos e muitos anos depois. Hoje sei que o trabalho com a língua mudou e a forma de ensinar também. No início deste ano, fiz algumas disciplinas de um curso de Pedagogia EAD e entendi que felizmente a lógica é outra.
Essa relação simbiótica entre a arte e a comunicação é a base conceitual do nosso catálogo desde o início, está em todas as linhas editoriais. Não é possível para mim separar o que se diz do como, o trabalho de linguagem do conteúdo que os livros abordam. E por isso preciso circular e ver o mundo, estar perto de todos os elos dessa cadeia. Minha pessoa física não consegue ficar só aqui nesta bat-cadeira, tem que estar nas feiras, nas palestras e nas escolas.
Tenho refletido muito sobre até onde vamos com os livros como editora. É importante descobrir novos autores e autoras e colocá-los no mundo? Sim. Mas como desenvolver mais gente? Como ampliar a cadeia geral do livro com novas editoras e com novas livrarias, criadas e administradas por pessoas que talvez nunca tivessem se sentido autorizadas a circular por esse meio, como eu não me sentia quando entrei na faculdade de Jornalismo e descobri que havia um curso exclusivo para a edição de livros, do qual eu nunca tinha ouvido falar?
Tive o privilégio de ouvir Bel Santos Mayer falar sobre a biblioteca comunitária de Parelheiros recentemente num evento; tivemos o seminário do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (PMLLLB) com a participação de bibliotecários e professoras; trouxemos Sonia Rosa, em parceria com a Pallas Editora, para participar da comemoração dos 50 anos das Salas de Leitura de São Paulo. Este ano andei muitos quilômetros dentro de São Paulo para estar onde os leitores e leitoras estão. Fui a Guaianases pelo projeto Quero na Escola falar sobre assédio para várias turmas do Ensino Médio de uma escola estadual. Fui a Guarulhos falar sobre feminismo para uma turma de EJA. Fui de novo a Guaianases para participar de uma reunião do Conselho do PMLLLB na biblioteca de um CEU. E viajei por várias cidades também.
Tem muita coisa acontecendo, e falta tanto. Felizmente teremos um governo que minimamente olha pra isso, que enxerga essa potência que eu também vejo para lá dos rios que cortam São Paulo, para lá da Zona Sul carioca.
Para o ano que vem, já começamos estreitando nossos laços com o Quero na Escola, em uma ação que vou contar na próxima news. E estamos ansiosamente aguardando que o ano termine com a concretização de algumas licitações da Prefeitura de São Paulo que vão levar nossos livros para as mãos de jovens estudantes e profissionais de bibliotecas e salas de aula, o que também vai dar o alívio financeiro de que estamos precisando (muito!) depois deste ano tão cheio de altos e baixos.
Deixo pra vocês então o vídeo de fim de ano do Quero na Escola, com depoimentos de alguns dos jovens impactados pelo projeto, pra vocês chorarem comigo. E uma foto da nossa equipe (tem a Maria também, que mora no Espírito Santo e trabalha a distância, numa foto linda este ano quando estivemos juntas na Flip). Essa batalhou demais este ano e entra em recesso esta semana, para voltar dia 4 de janeiro cheia de gás pra um 2023 de reconstrução – das instituições, da democracia e principalmente da esperança, que tem a cabeça nas nuvens, mas os pés plantados no chão.
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