Livros que causam, livros com causa
29/02/2024

Festa na Academia Paulista de Letras para a posse de Djamila Ribeiro

por Chico Mieli

 

 Antes, vale voltar um pouco no tempo... 

Entre o grupo de membros-fundadores da Academia Brasileira de Letras, na linha de frente daqueles primeiros candidatos a imortais, estava uma mulher. Excepcionalmente bem sucedida como autora de romances, peças e crônicas, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) era reconhecida pelo público e por seus pares, elogiada por Machado de Assis, Olavo Bilac e Coelho Neto. Sediou reuniões para a formação do núcleo carioca da ABL, em 1897, e chegou a ser cotada para ocupar a cadeira de número 3. 

Não houve jeito; não bastaram os elogios e a influência. Por cumprimento ao modelo da matriz francesa, inspiração absoluta para a nossa Academia, o privilégio de ingresso à imortalidade literária – decidiu-se – seria unicamente masculino. Assim, a autora de A Falência não pôde ingressar ao time; na cadeira 3, sentou-se o seu marido.   

O artigo 17 do regimento interno da ABL manteve-se inalterado por exatos oitenta anos, até que a eleição de Rachel de Queiroz, fenômeno do romance nordestino engajado, possibilitasse o ingresso de outras escritoras. A ela, eleita em 1977, seguiram Dinah Silveira de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Zélia Gattai, Ana Maria Machado, Cleonice Berardinelli, Rosiska Darcy, Fernanda Montenegro. E só.  

Aqui em São Paulo, na já centenária Academia Paulista de Letras, a insuficiente representação de mulheres não é menos vexatória para a casa. Pudemos contar, sim, com uma fundadora: Prescilliana Duarte de Almeida, poetisa, filha de um coronel de Pouso Alegre. Uma para as quarenta cadeiras... Desproporção que faz lembrar de outra, mais acentuada: e os negros? Na Academia Brasileira, se considerarmos Machado de Assis, houve mais outros dois, Domício Proença Filho e Gilberto Gil.

Ora, até ontem, 01/09, na sede da Academia Paulista no Largo do Arouche, centro de São Paulo, sentavam-se cinco mulheres, nenhum negro. Agora, oficialmente empossada, Djamila Ribeiro, negra, feminista, filósofa, candomblecista, traduz a chance de uma nova fisionomia e de uma nova perspectiva à casa. Chance de um outro tipo de debate ali dentro, mais horizontal e mais atento ao atual, sem deixar de ser acadêmico.

A respeito da posse na APL, em entrevista ao Estadão, ela refletiu sobre o trabalho como escritora e editora, publicando intelectuais negros e negras, difundindo vozes silenciadas: "cada vez mais urgente para o fortalecimento da democratização do conhecimento e das letras no Brasil”. Djamila coordena o Selo Sueli Carneiro, lançado pela Jandaíra, assinando Lugar de Fala, seu primeiro livro e título inaugural da nossa Coleção Feminismos Plurais. Também é autora de Quem tem medo do feminismo negro?, de Pequeno manual antirracista – Jabuti de 2019 na categoria "Ensaios em Ciências Humanas" – e de Cartas para minha avó, os três pela Companhia das Letras. 

Cerimônia solene. Batuque e comidas preparadas pela comunidade do terreiro Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá, no comando da recepção. As presenças de Conceição Evaristo, Leci Brandão, Pai Rodney Williams, Orlando Silva e da filha de Djamila, Thulane, no púlpito. Obras da artista plástica Alessandra Castelhano no saguão. O fato inédito a ser celebrado: uma mulher negra ocupando semelhante espaço de prestígio, reduto de tradições absolutamente restritas. 

A posse virou xirê: festa à filha de Oxóssi!  A flecha do orixá caçador aponta para a renovação radical do que ainda houver de segregação dentro e fora dos salões. E para a certeza de que a imortalidade se faz de lutas bem mortais.

Fotos: Rodrigo Trevisan Dias

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