Cinco Perguntas com Lívia SantAnna Vaz

por Chico Mieli
Hoje retomamos o quadro de entrevistas com nossas autoras e autores aqui no blog da Jandaíra. Após o piloto, realizado com a Márcia Wayna Kambeba a respeito dos seus Saberes da Floresta e Ay Kakyri Tama - Eu Moro na Cidade, convidamos uma recém-integrada ao grupo de colaboradores da editora para responder a cinco perguntas.
"Quando falamos de um estado democrático de direito, é muito difícil imaginar uma democracia concreta, substantiva, efetiva se as instituições públicas e privadas não refletem sequer minimamente a diversidade do povo."
A conversa é com Lívia Sant'Anna Vaz, que lançou, em setembro, Cotas Raciais – 13° volume da Coleção Feminismos Plurais pelo Selo Sueli Carneiro. Estas cinco perguntas aprofundam aspectos das discussões sobre ações afirmativas abordadas no livro, aproveitando para apresentar, também, parte da trajetória da autora: doutora em Direito e Estudos Jurídicos pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Em seu estado, já foi coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação e do Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher e da População LGBT... Em 2020, foi nomeada nada menos do que uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, na edição Lei e Justiça da organização MIPAD.
Redação Jandaíra: Lívia, você é baiana, jurista, promotora de justiça, foi contemplada com a Comenda Maria Quitéria pela PGJ da Bahia em 2017. Como ingressou nesse embate na área do direito público?
Lívia Sant'Anna Vaz: A pergunta é importante. Eu tenho voltado à história de como ingressei na área jurídica para explicar às pessoas os modos pelos quais o racismo atravessa as subjetividades, as vidas e as escolhas de nós, pessoas negras, tolhendo a nossa liberdade. Quando eu tinha dezessete ou dezoito anos, antes de escolher minha carreira, meu pai, que era um homem negro, me chamou para uma conversa só entre nós dois e me perguntou se eu ja tinha decidido qual a profissão que eu queria seguir. Ele sempre dizia que eu tinha resposta pra tudo, na ponta da língua, e prontamente respondi que queria ser jornalista. Meu pai me devolveu a pergunta: “Você já viu mulheres negras na televisão brasileira?” Naquele tempo eram pouquíssimas, né… Ainda são poucas, imagine naquele tempo… E isso me atravessou, eu fiquei impactada com a pergunta que, na verdade, era uma provocação para refletir sobre o racismo – e que me fez mudar a minha escolha.
Na ocasião, meu pai me lembrou das nossas reuniões de família, convocadas pela minha mãe. Primeiro ela conversava com o meu irmão mais velho, que sempre foi muito calado, tímido e que continuava calado mesmo a partir das perguntas dela. A minha irmã do meio era muito emotiva e chorava nessas horas. Já eu rebatia cada argumento e minha mãe ficava furiosa com a caçula da família contra-argumentando tudo o que ela dizia. Meu pai tomou como exemplo essas ocasiões e disse: “Você tem tanto dom, tanto talento para a argumentação, por que você não segue a carreira jurídica?”. Ele que me orientou a seguir a carreira jurídica. Digo "orientar" mesmo, no sentido de “ori”. Não que o Direito fosse mais fácil para pessoas negras, mas ele achava que eu conseguiria me sair melhor nessa área já que enxergava, em mim, um talento. Hoje eu digo que essa orientação foi ancestral mesmo. Eu me sinto cumprindo uma missão ancestral, me sinto no lugar certo para cumprir a missão que me foi designada nessa luta emancipatória e com a qual eu tenho, como mulher negra, muito compromisso pessoal e profissional.
RJ: Em seu livro Cotas Raciais, lançamento da Jandaíra, você traça um panorama da aplicação dessas ações afirmativas no Brasil. O país passou a implementar cotas, ainda de forma bastante tímida e circunstanciada, desde os primeiros anos deste Século XXI. Qual é a origem desse tipo de medida contra a desigualdade? Em quais experiências o país se inspirou para pautar o projeto?
LSV: As ações afirmativas surgem na Índia, principalmente após o seu processo de Independência [reconhecida em 1947, após duas décadas de movimentos anti-colonialistas] e estão amplamente previstas na Constituição Indiana de 1950. Mas foi nos Estados Unidos da América que elas ganharam maior notoriedade, especialmente as cotas raciais para pessoas negras. O Brasil se inspira nessa experiência estadunidense, porém com uma modalidade diferente, já que temos, de fato, percentuais de reserva de vagas para pessoas negras.
"Hoje as cotas raciais são constitucionais. Revogá-las seria uma atitude contra a Constituição nacional."
RJ: Durante discurso aos alunos da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em agosto, o ex-presidente Lula louvou a política de cotas, citando uma velha frase de Che Guevara. Com a lei, o ensino superior no Brasil estaria, enfim, “se pintando de povo”. Na nossa produção acadêmica, quais foram os efeitos desse novo contingente de profissionais pretos e pardos?
LSV: Hoje, nós temos duas modalidades de cotas raciais no Brasil, as que oferecem ingresso ao ensino superior, de um lado, e aos concursos públicos, de outro. Quando falamos das primeiras, nos referimos à lei 12.701 de 2012 que completou dez anos agora, no dia 29 de agosto. Nesse caso, as cotas raciais entram como subcotas da cota social, porém essa política para acesso às universidades é mais antiga, tem vinte anos… Então já começamos a enxergar, sim, o resultado dessa política pública, já começamos a ver um espaço universitário não mais monocromático e exclusivo à branquitude, como costumava ser. Já temos o início de um processo de democratização do ensino superior, de um processo de diversidade étnico-racial no acesso aos cursos oferecidos, mas ainda incipiente. Dez anos de lei de cotas não dá conta de quatro séculos de escravização de corpos negros e de todos os direitos que foram retirados dessa população, nem da proibição de que pessoas negras e escravizadas frequentassem as escolas, o que foi praticado no Brasil durante o século XIX. Ainda é pouco, muito pouco.
Há um espaço mais democrático e diverso nas universidades, mas a métrica que eu considero correta não é a quantidade de estudantes negros e negras que ingressam nos cursos. O objetivo das cotas raciais é muito maior do que esse, é romper com a estrutura racista, é trazer uma estabilidade para a situação que a ação afirmativa quer solucionar. Não é apenas o ingresso desses estudantes que vai solucionar a questão do racismo e da discriminação racial nesse espaço de poder, mas que possam ingressem e saiar formados com um ensino de qualidade. O sucateamento das políticas de permanência tem dificultado bastante esse processo, por isso a métrica tem de ser quantas pessoas negras saem formadas e qualificadas para enfrentar o mercado de trabalho de maneira efetiva.
No entanto, em relação aos docentes negros que estão ocupando esse lugar, daí já é via concurso público. Entramos na segunda modalidade de cotas, prevista pela lei 12990 de 2014, que vai completar 10 anos em 2024. Insisto na distinção devido ao que chamo no livro de um "simulacro de cotas raciais" na docência de ensino superior. É um simulacro porque os editais de concursos públicos, seja de universidades federais (seguindo a lei que vincula o cumprimento de 20% de vagas para cotistas) ou estaduais (dependendo das leis vigentes em cada estado), oferecem as vagas de maneira fragmentada, especializada ou departamentalizada. A lei diz que a cada três vagas, garante-se uma para cotistas; o que acontece é que muito raramente se consegue reunir três vagas em um determinado departamento ou disciplina de uma universidade. Têm-se a previsão formal de cotas raciais nos editais, mas não se oferece a vaga para cotas raciais por não somar três vagas para aquele mesmo departamento ou disciplina. Portanto, nós temos questionado isso, com atuação inclusive na Promotoria de Combate ao Racismo de Salvador. Isso tem sido questionado nacionalmente e eu questiono isso no livro porque o que as universidades têm de cumprir não é um percentual em relação às vagas fragmentadas, mas ao total de vagas oferecidas. Cumprir a lei de cotas raciais para acessar o ensino superior na condição de docente é estabelecer o percentual em relação ao total de vagas e não às vagas de departamentos específicos. Isso porque temos, inclusive, fazendo a conta, um passivo muito grande: se, a cada cem vagas, as universidades federais deveriam garantir vinte para professores negros e negras, e essa lei não foi cumprida em seu tempo de vigência, temos que contabilizar quantas vagas foram oferecidas durante todo esse intervalo para entender quantos docentes negros de fato entraram. Esse passivo deve ser corrigido pelo descumprimento da lei durante esse período. Então, há um incremento principalmente de discentes, mas, com relação aos professores, avançamos muito pouco.
Para associar ao discurso de Lula, esse "pintar a universidade de povo" é fundamental. Quando falamos de um estado democrático de direito, é muito difícil imaginar uma democracia concreta, substantiva, efetiva se as instituições públicas e privadas não refletem sequer minimamente a diversidade do povo. Sabemos que as pessoas negras não estão representadas nas câmaras legislativas, no poder executivo, nas universidades, nos cargos públicos – acabam sendo objeto de política pública e de decisão judicial. Isso é muito grave. A diversidade é algo que enriquece todas as pessoas e trazer diversidade étnico-racial para as universidades é enriquecer o processo democrático brasileiro, enriquecer a troca de saberes. Esses espaços monocromáticos e monolíticos têm muito pouco o que crescer se seguirem praticando o apagamento de outros saberes tão importantes para nós, brasileiros.
RJ: Dez anos depois, inclusive pelo lastro bastante concreto que produziram social e economicamente, as cotas raciais parecem realidade conquistada, um sistema regularizado em grande parte do país. De onde partem as ameaças à legislação que as garante?
LSV: Primeiro, essas ameaças partem de uma interpretação equivocada da lei de cotas, a primeira delas, aquela direcionada para o acesso ao ensino superior. A lei diz que, em dez anos, a política pública seria revisada. Revisão não se confunde com revogação! O poder público inclusive está em mora a esse respeito: é preciso que se apresente dados ou se baseie em dados - e há diversos dados de muita credibilidade produzidos pelas universidades, por pesquisadores sérios e sérias. Então precisamos desses dados para entender até onde nós fomos com essa política pública nesses dez anos e até onde precisamos chegar para mudar de fato o problema de maneira estrutural. Essa revisão deve buscar o aprimoramento da política pública. A lei 12.701 nada diz de revogação e sim de revisão adequada. Os instrumentos internacionais de direitos humanos e os próprios movimentos negros jamais definiram as ações afirmativas e as cotas como modalidade dessas como instrumento eterno. Mas eles precisam ter tempo suficiente para mexer com as estruturas racistas, o que não aconteceu ainda. No entanto, é importante dizer que, em relação às cotas raciais para concursos públicos, os termos da lei, aí sim, estabelecem vigência de 10 anos. Há a necessidade de renovação legal para estabelecer novamente esse instrumento.
Há um argumento muito importante contra essas ameaças que é o fato das cotas raciais serem, hoje, constitucionais. Nós assinamos e ratificamos a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância [realizada em 2013, na Guatemala], que estabelece como compromisso dos Estados a adoção de medidas especiais de promoção da igualdade racial para grupos raciais vulnerabilizados. Não há dúvida nenhuma de que, no Brasil, pelos dados oficiais inclusive, o povo negro constitui um grupo racial vulnerabilizado por processos econômicos, políticos e históricos. Se falarmos em mortalidade infantil, crianças negras são as que mais morrem. Se falarmos em todo tipo de violência contra a mulher, são as mulheres negras as mais afetadas, seja violência obstétrica, mortalidade materna, violência doméstico-familiar, violências sexuais, feminicídios… Se falarmos na juventude negra, também temos um processo genocida em curso, que é contra o povo negro inteiro, mas que, se falarmos de fenômenos como o encarceramento em massa, violência policial letal, condenações por erro no reconhecimento de pessoas no processo penal, são fenômenos que atingem de maneira mais contundente os jovens negros. E, se apelarmos à expectativa de vida no Brasil, em todos os estados da federação pessoas negras vivem menos que pessoas brancas. Trata-se de um fator determinante de desigualdades e violência. Isso sem falar nos índices de desemprego que vão atingir mais a população negra, no acesso mais difícil e obstaculizado à saúde, à educação e às demais esferas de direitos fundamentais.
Sim, pessoas negras formam um grupo racial vulnerabilizado e, portanto, são destinatárias necessárias de ações afirmativas conforme estabelece a Convenção Interamericana Contra o Racismo, aprovada no Brasil nos moldes do Artigo V, parágrafo III da Constituição Federal. Dispositivo que afirma que tratados internacionais de direitos humanos, aprovados daquela maneira, são emendas constitucionais. Ou seja, hoje as cotas raciais são constitucionais. Revogá-las seria uma atitude contra a Constituição nacional.
RJ: Por fim, um ponto central do seu Cotas Raciais é o levantamento de aspectos ainda a se aperfeiçoar na aplicação das ações afirmativas. O que a sua pesquisa demonstrou ser mais urgente a se solucionar nessa direção?
LSV: É difícil hierarquizar medidas para um povo que sofreu quase quatrocentos anos de escravização. É tudo urgente pro povo negro deste Brasil: as pessoas negras estão morrendo, há um processo genocida em curso. Mas eu diria que a prioridade é garantir o que já temos, garantir o acesso eficiente às cotas raciais. Elas foram e são fraudadas. Hoje menos, porque as comissões de hétero-identificação [que verificam se o candidato atende aos critérios fenotípicos que o identifiquem como preto ou pardo, confirmando, ou não, a autodeclaração prestada] já começam a funcionar de maneira mais efetiva. No entanto, passamos alguns anos sem essas comissões, com pessoas socialmente brancas ingressando nas vagas reservadas para pessoas negras e, com isso, burlando o sistema e impondo um desvio de finalidade da política pública. Então eu diria que urgente é garantir a manutenção com eficiência daquilo que já conquistamos, o que não exime o estado e a sociedade brasileira de buscar outras tantas formas de quitação dessa dívida histórica imensa que existe no Brasil com o povo negro.
"Eu me sinto cumprindo uma missão ancestral, me sinto no lugar certo para cumprir a missão que me foi designada nessa luta emancipatória e com a qual eu tenho, como mulher negra, muito compromisso pessoal e profissional."