“Algumas palavras sobre mães raras...”: homenagem a Adriana Dias

O Blog da Jandaíra retorna, abrindo caminhos neste 2023, com uma homenagem à antropóloga e ativista Adriana Dias Higa. Com contribuições acadêmicas e políticas imensas contra o patriarcado, o capacitismo e o antissemitismo, Adriana foi responsável pelo minucioso levantamento das células neonazistas no Brasil que apontou o salto de 75 núcleos para 530 entre 2015 e 2021. Portadora da Síndrome dos Ossos de Vidro, Adriana faleceu dia 29 de janeiro.
Na newsletter deste mês, nossa diretora editorial, Lizandra, recuperou o texto de introdução que Adriana escreveu para o livro Mães Raras, de Desirée Novaes, lançado pela Jandaíra em 2018, com histórias de sete mulheres que tiveram filhos com doenças raras e, por isso, descobriram em si uma força que não conheciam. Ele segue aqui, na íntegra, como demonstração de luta e amor:
Algumas palavras sobre mães raras...
Adriana Dias Higa
"Algumas mães são inexplicáveis. Intraduzíveis. Este é um livro de narrativas sobre mulheres fortes, cujo caminho é marcado por um amor tão intenso que transforma vidas. Eu conheço cada uma delas. É impossível conhecer essas mulheres e não ser transformada por elas.
Elas são mulheres comuns que, diante de desafios imensos, assustadores, abraçaram o amor. Abraçaram o amor todo dia, a cada segundo, a cada desafio. Contaram com as pessoas a sua volta, deram beijos nas bochechas rosadas das crianças que amavam, acreditaram na vida quando parecia impossível e continuaram na luta. Apesar desse desafio inexplicável e intraduzível, elas se tornaram reais.
E como um presente para o coração delas, Désirée, outra
amiga extraordinária, extremamente rara também, oferece as histórias dessas mulheres inspiradoras e absolutamente maravilhosas para você. Elas, de verdade, podem transformar sua vida: mudar sua perspectiva, desorganizar o que necessita ser flexibilizado, organizar o que precisa ser ajustado, curar suas feridas, bagunçar seu coração com a guerra de travesseiros que sua criança interior precisa fazer para dar o próximo passo nadireção do sentido e do propósito. Aceite, portanto, este livro como um presente. De mulheres para mulheres, de corações para corações, como cura e sentido.
Quando essas mulheres ouviram pela primeira vez “sua (seu) filho(a) tem uma doença rara”, elas sentiram sentimentos diversos. Mas todos esses sentimentos foram sendo transformados em pequenos bordados, por cada uma delas. Elas vivenciaram trajetórias muito diferentes. São de classes diferentes, de distintas regiões do país, receberam formações culturais, sociais, simbólicas, religiosas, raciais, absolutamente díspares.
A maternidade de uma criança rara não traz uma receita de
bolo e elas não vêm marcadas com uma estrela na testa. Essas mães também não estavam preparadas, elas não foram escolhidas. Mas todas optaram conscientemente por perder bastante para ganhar muito mais. Todas escolheram ficar meio loucas, brigar destemidamente, sentar em camas de hospital por dias, semanas e meses seguidos, virar “mães de UTI”, rir, chorar, nunca desistir, falar, ouvir, calar, viver por seus filhos.
O que torna uma mãe capaz de memorizar milhares de exames enquanto faz crochê ou desenha passarinhos? O que faz uma mãe enfrentar parlamentos e equipes médicas, bandos de enfermeiras, convênios de saúde, escolas, indiferença, e fazer um bolo de chocolate no fim do dia? Amor. E com esse amor, tão profundo quanto misterioso, elas bordaram pássaros, manhãs, noites enluaradas, dias nublados, lágrimas, sorrisos, estrelas, madrugadas adentro. Enquanto velavam seus filhos, teciam, com os fios da alma, sonhos de dias melhores, pequenos desenhos de esperança.
Não são histórias simples as que você vai ler aqui. Vão da menina que, ao ser confrontada com bullying, perguntava se o preconceito era de raça, de gênero ou de neurodiversidade. Ou da menina que sofre fraturas até se tossir mais forte, cuja mãe vira noites fazendo pães de mel para pagar seu tratamento, até o menino cuja mente não para em um corpo que não responde a seus desejos de correr o mundo. Entre várias outras.
Uma mãe de criança rara enfrenta desafios únicos: ela lida com a possibilidade de perda desde o primeiro instante. Por isso, seu amor é único também. Tudo parece urgente, porque pode finalizar dali a alguns segundos. E pode realmente. Por isso, também, a vida parece mais simples. Não se perde tempo inventando problemas imaginários, pois os reais são imensos.
Os exames, a fragilidade da vida e o medo da morte tornam grandes questões diminutas e pequenas, enormes. O dinheiro nunca será suficiente. O tempo nunca será suficiente. O filho sempre estará em primeiro lugar. Quase nunca o pai entenderá isso. No Brasil, conforme pesquisa realizada em 2012, cerca de 78% dos pais abandonam essas mães antes de a criança completar cinco anos. Um dado alarmante, pois se a mãe é a cuidadora principal, numa lógica perversa que faz da mulher responsável por quase todo cuidado infantil no Brasil, no caso da mãe de criança com doença rara ela passa a acumular esse cuidado redobrado com o provimento da casa. Mas como cuidar e prover ao mesmo tempo?
Doenças raras trazem solidão, isolamento social. Afinal, que tempo tem uma família com criança com doença rara de fazer algo além de cuidar da própria criança? Além de buscar novos tratamentos, de dar conta da agenda de médicos, fisioterapia, nutricionista e cuidados? Some-se a isso o fato de que o mundo isola o diferente. As mães aqui narradas lutaram contra a incompreensão e as interrogações do outro. Quase todo o tempo.
Desde os anos 1980, quando surgiu o movimento das mães raras, associações de pacientes de doenças raras se formaram. Os avanços nos métodos de pesquisa genômicos tornaram-se fundamentais para viabilizar aos pesquisadores a investigação e o diagnóstico dessas doenças e milhares de novas descrições foram realizadas. Atualmente, são conhecidas algo entre 6 e 8 mil doenças raras, número que varia conforme a classificação. Ainda que esse critério não seja aceito unanimemente por parte de todos os pesquisadores, usamos no Brasil a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS) que define como doença rara aquela cuja prevalência afeta 65 indivíduos a cada 100 mil habitantes.
O diagnóstico é uma tarefa árdua no Brasil, e muitas crianças morrem sem terem sido diagnosticadas.
Nesses grêmios de doentes, famílias de diversas origens sociais começaram a dialogar sobre suas doenças comuns e passaram a exigir direitos. As associações, ao se vincularem em uma luta comum, alcançaram mais força política. Quanto mais associações presentes na luta, mais forte o movimento se via.
Mães com crianças com doenças raras entraram na luta. Desde o início, brigam com os dragões que enxergam seus filhos e filhas como números, registros ou problemas. Para elas, essas crianças, bênçãos infinitas, motivo de vida, são vidas. Simplesmente porque são mesmo. Vidas que valem a luta. E as mães deste livro fizeram da luta a própria vida. E nunca lutaram apenas pelas suas, mas por todas as crianças com doenças raras.
No meio do meu caminho, eu as encontrei — Regina Próspero, Luana Ribeiro, Jô Nunes, Karolina Cordeiro, Linda Franco, Rosana Martinez e Fátima Braga, as mães bordadeiras de esperança, junto com a autora desse livro maravilhoso — e nossos caminhos se acolheram para lutar por todas as vidas com doenças raras. Nossas vidas com doenças raras, nossos bordados de amor, nossas esperanças de dias melhores.
Você tem em mãos histórias de chorar, de rir, de emocionar. Abra seu coração. Permita que essas sete mães bordem sua alma também, para que depois de tudo essas histórias lembrem que você é humano — esse é o mais importante dos dons.
Afinal, as mães existem para nos lembrar de nossa humanidade. O amor delas persiste para nos lembrar da eternidade. O presente livro é um dom de humanidade e eternidade. Se você permitir, ele lembrará a você o caminho original, aquele de que todos precisamos.
Receba este livro como uma colcha bordada, que traga reconhecimento de si mesmo e acolhimento a seu coração, sempre.
Ótima leitura."