A Filha Perdida, maternidade e redes de apoio
por Claudia Pucci Abrahão
O livro já foi um susto, e o filme o materializou de forma primorosa para mim.
Acendeu-se o debate.
Acordei sobressaltada com sonhos relacionados.
Eu, que sou mãe por escolha, ainda assim estremeci. Não pelo impacto das emoções da personagem (sombra intimamente conhecida), mas pela coragem de Elena Ferrante (e de Maggie Gyllenhaal, que escreve e dirige o a adaptação cinematográfica) de expurgarem o indizível.
Reflito: qual o impacto da nossa época no que hoje chamamos de maternidade?
Essa imensa, intensa carga mental a que as mães são submetidas não é algo natural, não é resultado da maternidade em si, mas da forma insana como nossas relações estão configuradas, de como nos organizamos socialmente.
Performar maternidade perfeita é uma pressão a mais, mais um item a ser ticado na lista de metas diárias. Nesse caso, além de corrermos atrás da estrelinha, ainda fugimos do monstro da culpa. Entre o esgotamento e o banimento da Mamaland, ficamos com o primeiro. E ainda tomamos para nós o mérito de conseguirmos, sozinhas, a proeza de criar a prole.
(importamos a meritocracia proletária, e ainda não remunerada)
Até que a gente abra mão.
Não da maternidade em si, caso seja importante. Mas do modelo.
Uma coisa, para mim, é atravessar a fileira de renúncias que a maternidade exige. Veja bem, estou falando de escolhas, não de sacrifícios. Certa vez, um amigo definiu essa palavra, renúncia, como um "investimento naquilo que é realmente importante". Achei maravilhosa essa definição, porque ela me ajuda a discernir quando me deparo com aquelas decisões em encruzilhadas.
Decisões em ir ou ficar. Quando é importante maternar, quando e essencial me dedicar a outras atividades. Nem falo de passar três anos longe, mas curtos períodos de solitude em que precisei entender quem eu era depois de tudo.
Depois de me tornar uma, duas, três, mil.
Não, a gente não deveria se dividir. É isso o que quebra a gente.
Não, eu não sou mil em uma. Sou uma. E gostaria de ser cada vez mais inteira.
Renunciar ao que me afasta de mim, o essencial que me nutre.
Qual a diferença, para mim, entre uma renúncia e um sacrifício?
Renunciar é abrir mão do que, no momento, é menos importante do que é essencial. No caso, estar presente. E também ter a sinceridade de revelar as nossas emoções, o cansaço e os limites para os próprios filhos. Exigir que eles tenham essa noção é uma inversão absurda. É a gente que ensina isso quando conseguimos viver essa verdade sem culpa.
Sacrifício é abrir mão do que não poderia ser renunciado, não sem cortar um pedaço de quem se é.
Isso cobra seu preço.
Como diferenciar uma coisa da outra?
Eis a questão.
Lembrando que a possibilidade de escolher não abrir mão de um tempo nosso só é possível com uma rede de apoio. Para mim, nunca se fez tão obviamente necessária essa rede como depois de ter me tornado mãe. Nunca a falácia do individualismo se mostrou tão claramente. Somos seres gregários, e aquela história de que é necessária uma aldeia inteira para se criar um ser humano, para mim, é bem real.
Sem essa rede, eu não seria nada.
Sem essa rede, meus filhos teriam apenas meu cansaço e meu sacrifício, que seriam cobrados com juros futuros.
E olha que nem estou comentando nada sobre o machismo estrutural, que é parte essencial desse drama, porque senão esse texto seria um livro.
Só comento: pai não é apoio, é corresponsável.
Não, eu não me basto.
Não, sozinha eu não dou conta.
Nem preciso dar.
Para saber mais sobre o assunto leia Canto da terra e Broto da terra. Aproveite e também assista A Filha Perdida na Netflix.
Cláudia Pucci Abrahão é autora de "Canto da terra" e "Broto da terra", ambos publicados pela Jandaíra, diretora, documentarista e mãe de 3 filhos.